24/11/2025 24/11/2025 O Rato que Nasceu do Rio Merk De: O Informante das Sombras Data: 24 de novembro de 2025 – 02h49 Localização: Margem podre do Rio Merk, setor das Docas Esquecidas, Uttia Boa noite para quem ainda consegue fechar os olhos. O Rio Merk sempre cheirou a morte lenta. Agora ele pariu algo que anda. Tudo começou na noite de 19 de novembro. Um ex-trabalhador da estação de tratamento (hoje conhecido apenas como “Carcaça”) jura que viu, entre os pilares podres do antigo cais, um rato do tamanho de um pastor-alemão. Não tinha pele, nem pelo: era feito de líquido preto, grosso, uma mistura de óleo queimado, sangue velho e lama do próprio rio. Movia-se em quatro patas de gosma que se reformavam a cada passo, sem deixar pegada. Só duas brasas verdes brilhando onde deveriam estar os olhos. Quem encarava sentia um chamado direto na cabeça, doce e gelado: “Vem. Ainda tem espaço lá no fundo.” Carcaça correu. Outros não correram. Em cinco dias, onze mendigos que dormiam sob as pontes do Merk simplesmente deixaram de existir. Nenhum grito, nenhum corpo, nenhum sapato perdido. Só os cobertores dobrados com um cuidado assustador, como se alguém tivesse arrumado a cama antes de levar o dono para sempre. A polícia foi chamada. Resposta oficial, em voz alta e com sorriso: “São restos da cidade. Restos voltam pro lixo. Próximo.” Então as crianças resolveram fazer o que os adultos não fizeram. Seis delas, entre 8 e 13 anos, moradoras das palafitas do setor 7, saíram na tarde de sexta-feira armadas de lanternas, varinhas e coragem demais. Queriam “achar o rato preto e trazer os tios de volta”. Nunca mais foram vistas. Agora as famílias estão acampadas na margem, com cartazes, fotos e gritos que atravessam a noite. O prefeito não gostou do barulho. Ontem à noite, às 22h14, a tropa de choque chegou. Cassetetes, gás, cães. Os manifestantes foram dispersados. Quinze pais e mães foram presos em flagrante por “perturbação da ordem e dano ao patrimônio”. Hoje de manhã eles já estavam na Prisão da Costa Leste, cela comum, junto com os piores assassinos e traficantes de Uttia. Lá dentro, a média de sobrevivência de quem não pertence à facção é de três dias. Alguns já estão no segundo. O Rio Merk continua correndo, preto e silencioso. De vez em quando, quem passa perto ouve um leve ploc-ploc, como se algo grande estivesse bebendo devagar. Se você mora nas palafitas, nas docas ou em qualquer lugar onde dê pra ouvir a água batendo na madeira à noite: não olhe para o rio depois que o sol cair. Não atenda se ouvir alguém chamando pelo nome. E, pelo amor de tudo que ainda resta sagrado em Uttia, não deixe as crianças chegarem perto da margem. Porque o rato não está caçando. Ele está convidando. E o Rio Merk nunca recusa um convidado. Fiquem longe da água. Fiquem inteiros. — O Informante das Sombras (enviando isso com os pés fora do chão, só por precaução) Se você ainda acha que isso é só mais uma história de Uttia… espere até ouvir o ploc-ploc do seu lado da margem.
23/11/2025 Incidente na Saída do Bairro do Lixo: Eles Chegaram Até a Grade De: O Informante das Sombras Data: 23 de novembro de 2025 – 04h52 Localização: Portão 3, Saída Norte do Bairro do Lixo, Uttia Boa madrugada, quem ainda tiver coragem de ler. Pela primeira vez em 27 anos, o Bairro do Lixo cuspiu seus moradores para fora. Ontem, por volta das 23h41, três caminhoneiros que faziam a rota noturna de descarte juraram – sob palavra e sob medo – que viram pelo menos doze figuras atravessando a grade enferrujada do Portão 3. Não escalaram. Passaram direto, como se o metal não existisse. Quem conhece o Bairro do Lixo sabe o combinado silencioso da cidade: depois das 19h, ninguém entra, ninguém sai. O que acontece lá dentro fica lá dentro. O lugar é o estômago podre de Uttia: todo o lixo, químico, hospitalar, eletrônico e humano que a cidade produz é despejado ali desde 1958. O solo fede a bateria queimada e carne velha. Durante o dia ainda dá pra circular de máscara e caminhão blindado. À noite… à noite o bairro digere. E o que ele digere volta diferente. Os caminhoneiros descreveram assim (transcrevo do áudio que um deles me mandou antes de sumir do radar): “Eles eram gente… mas costurados errado. Braços de plástico derretido, pernas de geladeira, cabeças de boneca quebrada com olhos de lâmpada queimada. Andavam devagar, mas não tropeçavam em nada. Um deles carregava um carrinho de supermercado cheio de braços de criança. Outro mastigava um pneu como se fosse pão. O cheiro… Deus, o cheiro era de lixo aquecido no micro-ondas.” O mais assustador: todos seguiam na mesma direção. Para fora. Guardas municipais foram chamados às 00h14. Encontraram apenas marcas de mãos gordurosas na grade externa e um tênis infantil cheio de dentes humanos recém-arrancados. Nenhum corpo. Nenhum rastro de pneu. Apenas silêncio e o barulho distante de metal sendo mastigado. Moradores do entorno (os poucos que ainda não enlouqueceram) relatam luzes verdes piscando dentro dos montes de sucata desde a semana passada. Dizem que o Mana está mais forte ali, alimentando-se do que a cidade joga fora – inclusive corpos que nunca foram declarados mortos. O resultado são os Comedores de Lixo: não vivos, não mortos, apenas fome eterna costurada com arame farpado e saco plástico. Hoje pela primeira vez eles romperam a fronteira invisível. Perguntei a uma fonte antiga da prefeitura (que prefere o anonimato e um litro de cachaça) por que agora. A resposta foi curta: “O caminhão de resíduos hospitalares da última terça trouxe algo que não devia. Algo que ainda estava vivo quando chegou. Agora o bairro terminou de digerir… e quer devolver com juros.” Se você mora nos bairros Acácias Mortas, Ferro-Velho ou na região do Portão 3: tranque tudo. Não abra a porta para ninguém que bata pedindo “um pouquinho só”. Eles não sabem o que é “pouquinho”. E se ouvir o som de latas sendo arrastadas na rua à noite… reze para que seja apenas o vento. Porque o vento em Uttia nunca arrasta latas. Ele arrasta o que sobrou delas. Fiquem dentro. Fiquem vivos. Ou pelo menos inteiros. — O Informante das Sombras (enviando isso do porão, com a porta soldada) Se você mora perto do Bairro do Lixo e ainda não se inscreveu nessa newsletter… talvez seja a última chance.
22/11/2025 Novos Sussurros nas Sombras de Uttia De: O Informante das Sombras Data: 22 de novembro de 2025 – 03h17 Localização: Beco do Relógio Quebrado, Distrito Antigo, Uttia Leitores que ainda ousam abrir esta newsletter à noite, A cidade não dorme. Ela apenas finge. E ultimamente Uttia tem fingido muito mal. Nas últimas semanas, algo se move de novo sob as pedras gastas das nossas ruas. Não é o vento. Não é o rio poluído. É o Mana despertando — aquele velho veneno que corre nas veias desta cidade desde antes de ela ter nome oficial nos mapas. Aqui vão os fatos que consegui apurar antes que as luzes do meu quarto começassem a piscar sozinhas: Cristiana desapareceu da Livraria Barquel por 72 horas seguidas. A garota que todos conhecem por passar noites inteiras entre estantes empoeiradas sumiu na terça-feira passada. Voltou ontem, pálida, com os olhos vidrados e um livro que ninguém nunca catalogou nas prateleiras. Perguntei o que tinha lido. Ela só respondeu: “O índice está errado. Faltam capítulos que ainda vão acontecer.” O velho Barquel trancou a loja mais cedo e, pela primeira vez em 40 anos, colocou corrente no portão. Ele sabe de algo. Sempre soube. Eduardo e Marco foram vistos discutindo no Cemitério dos Espelhos às 4h da manhã. A amizade deles era a única coisa pura que restava neste buraco. Agora não é mais. Testemunhas (dois catadores de sucata que preferem permanecer anônimos) juram que Marco chorava sangue enquanto Eduardo tentava arrancar algo do próprio peito com as unhas. Quando a polícia chegou, só encontraram pegadas que terminavam abruptamente no meio do nada — como se os dois tivessem sido apagados do mundo no meio de um passo. O Homem Alto foi avistado novamente. Desta vez não na periferia. Ele estava no centro, bem em frente à Prefeitura, às 11h47 de uma manhã ensolarada. Três pessoas tiraram foto. Nas três imagens, só aparece um borrão de dois metros e meio de altura, chapéu enterrado até onde deveriam estar os olhos. A prefeitura nega. Claro que nega. Mas o relógio da praça parou exatamente às 11h47 e ainda não voltou a andar. Livros estão sangrando. Não é metáfora. Moradores do Prédio Verde, no bairro das Acácias Mortas, relatam que livros antigos (especialmente os sem autor declarado) começaram a verter um líquido escuro e quente pelas bordas. Quem toca fica com as digitais marcadas por semanas. Uma criança de sete anos lambeu. Está internada desde então, falando em línguas que os médicos juram que não existem. Uttia nunca foi segura, mas agora está acordada. E quando Uttia acorda, ela tem fome de histórias. Histórias reais. Histórias com nomes, datas e finais que ninguém quer escrever. Se você mora aqui, tranque as portas. Se você está pensando em visitar, não venha. Se você já leu demais sobre o Despertar do Mana… bem… talvez já seja tarde. Porque as páginas estão virando sozinhas. Fiquem atentos. A próxima notícia pode ser sobre você. — O Informante das Sombras (assinante vitalício do medo) Se você recebeu esta newsletter por engano, queime o dispositivo. Não adianta bloquear o remetente. Aqui em Uttia, o Mana sempre acha um jeito de entregar a mensagem.



